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Mostrando postagens de março, 2019

Contos curtos como o bilhete do suicida: JOGO DO BICHO

Ano da graça de 1984. Era Natal. O Pacheco estava fulo da vida. Saiu da oficina ao meio-dia, foi jogar no bicho. Falou para o funileiro:             — Só de raiva, vou jogar 6666.             Acertou a milhar seca na cabeça. Comprou um fusca e uma linha telefônica.

Ensaio: POSAR PARA O POEMA

Certa vez um amigo mostrou-me os desenhos que resultaram de ter posado para uma pintora enquanto transava com uma moça. A pintora ia desenhando todas as posições, ou a sugestão delas. Via-se como, em cada garatuja, o casal ia mudando de posição: ora ele em cima, ora em baixo, ela sob e sobre ele, em pé ele, curvada ela. O espectador dos rabiscos punha termo no desenho apressado. No fundo, sabia o que estava acontecendo ali, via o que não podia ter visto, porque não estava no quarto, mas podia imaginar pela arquitetura das posições, muito bem representadas pela pintora, o que teria se passado onde ele mesmo não estava. Resolvi fazer algo sob o mesmo princípio, mas que não fosse um retrato por meio do desenho, e sim do poema: dizer ao modelo que faça o que lhe vier à gana, o que achar que deve fazer, enquanto o poeta escreve o poema sugestionado pelo ir e vir das posições. Nisso, o poema buscará, como o desenho apressado, fazer ver o inaparente: a arquitetura do ato, a estrutura que, s

Crônica: A OUTRA PASSANTE

A mais linda camisa rosa, com uns babados, debrum, calça de sarja branca, a sapatilha que combinava com tudo. Ela usava óculos, cabelos presos, castanhos claros, uma franja. Quarenta anos? O lábio carnudo brilhava. E o queixinho (ai, que queixinho!), o queixinho arrebitado, sempre arrebitado. Atende o celular. O sotaque do Recife, o mais lindo de todos, ela diz:             — Tu tá bem? Tão desanimado ultimamente.             Além disso, meu Deus, ela sabe se preocupar com o outro! Mas o outro tem um grande defeito: é um homem... Olho as mãos dela. Aliança na mão esquerda. Não tem problema. Não tenho ciúme. Que eu seja o grande outro.             Assim que ela se levanta, me levanto também. Paro diante dela. Ela me encara encabulada. Não resisto:             — Essa camisa é linda, linda. E fica mais linda ainda em você.             Ganho um sorriso! Um sorriso alvo, luminoso, linguinha rosa, o canino, chego a ver o sininho da garganta.             — Obrigada! — ela respon

Crônica: EU!

De novo, me ponho a incomodar papai. Desde que eu falei a ele que a filosofia é a ciência da ciência em geral, ele gosta de ficar repetindo isso a torto e direito. Me irrito quando vejo alguém com muita certeza. Daí resolvo iniciar uma disputa:             — Pai, você concorda que toda ciência tem um princípio?             — Concordo.             — E que, se a filosofia é a ciência da ciência em geral, ela é responsável por dar princípio às ciências?             — Concordo.             — Mas ela é uma ciência, não?             — É.             — Logo, segundo o que assumimos, tem de ter um princípio, não tem?             — Tem.             — E qual seria o princípio da ciência das ciências em geral?             Realmente eu pensei que nessa eu ia desmascará-lo. Touché, convencido! No entanto, ele me vem com esta:             — O princípio da filosofia é a dúvida.             A resposta é ingênua, mas não é nada má. Como dar um nó nele?             — Boa! Mas a dúvida não

SE NÃO É AGUDA, É CRÔNICA

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O primeiro livro de Fernando Sabino era um livrinho de contos intitulado Os grilos não cantam mais . Fernando tinha apenas 19 anos, e já prometia ser o grande escritor que foi. Isso Mario de Andrade confirmou em cartas. Parte da crítica, no entanto, questionou se, em vez de contos, aquela compilação não seria de crônicas. Mario, muito astuto, respondeu: "Conto é o que o autor chama de conto". Ele destacava, assim, que os limites entre uma crônica e um  conto são tão tênues que não há um critério que não seja exterior ao texto.             Costumo pensar que a crônica mistura a ficção com a realidade: o leitor nunca sabe o que é real ali. Por isso, em geral as crônicas são publicadas em jornais. É claro que a minha definição pode parecer insuficiente: por que um conto não poderia também misturar a ficção com a realidade? É que a crônica assume isso, desde o início. O real e a ficção são enigmas. O conto não necessariamente assume esse compromisso.             Mas a melho

Crônica: CONHECI O CARLOS LYRA

Ele costuma ficar na Paulista. Usa um microfone na lapela, óculos, chapéu de pescador e parece o Carlos Lyra. O surpreendente é que ele canta como o Carlos Lyra. Ouvi-o cantar 'Garota de Ipanema' e logo pensei que era o Carlos Lyra que estava cantando. Quando ouvi 'Lobo bobo', tive a certeza: é a voz do Carlos Lyra! Dei uns trocados para ele. Ele merecia bem mais que isso. Comentei:             — Você é o Carlos Lyra, não é? - sabia que ele não era, mas queria ver qual a reação dele diante de alguém que o confunde com seu provável ídolo.             — Já me falaram isso - ele me respondeu: - É que ouço muito ele.              Só podia ser a convivência. Quando convivemos muito com uma pessoa, pegamos alguns hábitos dela, trejeitos, a entonação da voz. Só de falar ao telefone com um tio do Paraná, eu já impostava a voz. Uma amiga ficou uns meses em Belo Horizonte, e já voltou com sotaque. Ele é o caso extremo: conviveu tanto com a voz do Carlos Lyra que se transform

TUDO É FICÇÃO (a propósito de uma conversa entre Borges e Susan Sontag)

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Borges diz que o mundo inteiro é ficção. Até a filosofia é ficção, ele destaca. Li O livro de areia , que ele cita. Num dos contos, Borges, numa praça da Inglaterra, se não me falha a memória, encontra-se consigo mesmo jovem numa praça de Buenos Aires. Note bem: o velho Borges numa praça na Inglaterra encontra-se com o jovem Borges numa praça em Buenos Aires. E ambos eram Borges! Era uma personagem, mas também era Borges, o  autor, que se põe como protagonista de sua ficção. Há ali a sobreposição de tempos e espaços. A memória de Borges talvez seja a causa dessa sobreposição: dentro de nós, convivem resquícios de nós mesmos, que fazem com que, numa mesma narrativa, seja possível que um mesmo seja mais de um, e que, mesmo estando aqui e agora, esteja alhures e algures. Penso que é nesse sentido, talvez, que Borges diga que tudo é ficção: o que nós somos sem essas narrativas que inventamos de nós mesmos? E que, se outro contasse, seria outra. Lembro de um conto de Ficções . O "Pie

Crítica: A POESIA DO CIRCUNSTANCIAL E O VERSO DE CIRCUNSTÂNCIA

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Certa vez eu disse que o poeta Roberto Bicelli, em seu Antes que eu me esqueça , eleva o circunstancial ao eterno, numa espécie de ''close'' ou congelamento de cenas. Faz um recorte da realidade ordinária, aparta-o da totalidade, faz com que a vejamos pelo microscópio da poesia, trazendo a lume uma dimensão que está além da ordem em que o pedaço de realidade se insere. Isso redunda, muita frequentemente, numa po esia sintética (destacando, talvez, o caráter essencial da poesia: a síntese). No entanto, fazer poesia do circunstancial não quer dizer fazer "verso de circunstância". Que vem a ser o verso de circunstância? O verso de circunstância é essencialmente circunstancial. Não é que ele congele a circunstância. É o contrário: a circunstância em que ele foi feito é que o congela. Isso não quer dizer que ele não tenha valor estético. Bem pode ter enorme valor estético, que em geral não diz respeito a seu conteúdo imediato, mas à maneira como se insere na circ

Crônica: O POETÃO

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            Vinicius de Moraes dizia que no fim do Carnaval o que restam são saudades e cinzas. Como o fim de um "gozo espasmódico" (assim diz Fernando Pessoa), quando o que resta é cansaço. Mas não era sobre o fim do Carnaval que eu queria falar. Era sobre a grandeza do "poetinha". Sobre ele, um amigo e eu conversávamos. Que faz de Vinicius o grande poeta que foi? Mesmo após os modernistas (Oswald, Mário, Del Picchia), Vinicius de Moraes nos mostrava que ainda era pos sível ser moderno com soneto metrificado e rimado. Mesmo depois de AMOR HUMOR (Oswald)               Vinicius escrevia coisas como: De tudo, ao meu amor serei atento Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto Que mesmo em face do maior encanto Dele se encante mais meu pensamento             E o mais interessante: continuava sendo moderno. Vinicius, prezo a cânones, conseguia fazer poesia moderna. Sinal de que o moderno não era (ou não era apenas) a subversão de cânones. Era possível

Conto: OS CÍRCULOS DO INFERNO

Inferno vertical para o amor horizontal. Roberto Bicelli           Na Boca do Lixo, há os inferninhos e há o inferno. Entra-se discretamente, como quem não quer nada, dá-se de cara com Caronte ou Virgílio. Seja o barqueiro do Hades, seja o guia turístico do inferno de Dante, é preciso dar alguma coisinha a ele. Dois, três reais. Cumprimentá-lo, perguntar como anda o movimento, até que horas ele trabalha hoje. Virgílio-Caronte sorri, pergunta-lhe se vai chover, ao que você dirá: deu uns pingos. Acho que mais t arde chove. "Logo na hora que eu vou embora", ele dirá. Apertará os mil e um botões. O primeiro círculo, o segundo, o terceiro... até o nono. E então Virgílio-Caronte o abandona. É preciso descer a pé. Mas não se empolgue: em todos os círculos, só há uma pecadora: Francesca da Rimini. Você, meu caro, provavelmente é Paolo. Cada Francesca vai atentá-lo, oferecer-lhe, como Eva, a maçã da árvore da ciência do bem e do mal. Se você foi lá só pelo turismo, não aceite

A DIALÉTICA D'A CÂMARA CLARA

            Meu pai está sentado ao computador. Resolvo incomodá-lo:             — O que diferencia essas fotos do computador de uma foto em instantâneo? O que diferencia essas fotos do seu feed da foto mesma, na hora em que a pessoa tirou?             Ele pensa um pouco.             — Essas praticamente são "cópias" daquelas fotos, não? — ele me pergunta.             — É verdade. Mas são todas imagens, não são?             — São — ele responde.             — Então o que diferencia a imagem fotográfica das outras imagens?             — A imagem fotográfica é uma imagem que retrata o passado.             — Entendo... Mas, e a pintura, também não é uma imagem que possa retratar o passado?             A coisa foi se complicando. Mas a resposta foi ousada:             — A imagem fotográfica é uma imagem tirada por uma câmera fotográfica.             — É... Você tem razão. Mas como isso diferencia a imagem fotográfica das imagens do cinema em rolo de film