Crítica: A POESIA DO CIRCUNSTANCIAL E O VERSO DE CIRCUNSTÂNCIA
Certa vez eu
disse que o poeta Roberto Bicelli, em seu Antes que eu me esqueça, eleva o
circunstancial ao eterno, numa espécie de ''close'' ou congelamento de cenas.
Faz um recorte da realidade ordinária, aparta-o da totalidade, faz com que a
vejamos pelo microscópio da poesia, trazendo a lume uma dimensão que está além
da ordem em que o pedaço de realidade se insere. Isso redunda, muita
frequentemente, numa poesia sintética (destacando,
talvez, o caráter essencial da poesia: a síntese). No entanto, fazer poesia do
circunstancial não quer dizer fazer "verso de circunstância". Que vem
a ser o verso de circunstância? O verso de circunstância é essencialmente
circunstancial. Não é que ele congele a circunstância. É o contrário: a
circunstância em que ele foi feito é que o congela. Isso não quer dizer que ele
não tenha valor estético. Bem pode ter enorme valor estético, que em geral não
diz respeito a seu conteúdo imediato, mas à maneira como se insere na
circunstância que o congelou. No Brasil, Manuel Bandeira foi, muito
possivelmente, o primeiro a dar valor a esse tipo de poesia. Em 1948, publica o Mafuá do Malungo, cujo subtítulo era "Jogos onomásticos e outros versos
de circunstância". Aí, segundo o próprio poeta, ele busca "traduzir o
fugaz e o súbito em ideia", em "simples brincadeira ou palavras de
afeto aos amigos". Por exemplo, em resposta a um presente que lhe foi dado
ou num livro por ele autografado. Interessante, não? Drummond fazia a mesma
coisa. Os versos de Drummond foram compilados nos chamados Versos de
circunstância. Lá, cita nomes, acontecimentos, datas. Tudo fac-similado. Assim
vemos como esses poemas se prendem à circunstância de que nasceram. Não como em
Bicelli, em que a circunstância não importa tanto, mas sim aquilo que, no
poema, coloca-o numa dimensão "temporal" além da própria
circunstância - o eterno.
São
Paulo, 6-3-2019, quarta-feira de cinzas
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