Resenha à 'Interpretação de Muitos Mundos' (Ed. Versos em Cantos), de Juan Castro, no prelo

Interpretação de Muitos Mundos, de Juan Castro, é um livro cósmico. O leitor (criatura desconfiada) me acusará de tê-lo lido não por dentro, mas pela superfície: se há “mundo” no título, o resenhista, preguiçoso como é, trata de encontrar o equivalente grego do termo, para dar ares de erudição. Não se precipite, leitor. Uso o termo cósmico, aqui, com um sentido preciso: contra-subjetivo, ao revés do eu, anti-fichtiano (me perdoe pelo inevitável rompante filosófico). Para Fichte, se o leitor resolver ser filósofo, que não faça concessões ao “mundo” (que faça, na verdade, o contrário do conselho de Kafka: “entre você e o mundo”, Fichte diria, “prefira você” — ou, para ser mais exato: prefira o “eu”). O mundo, para o filósofo, não existe em absoluto: o mundo, que aí está, que é um dado, aquele que os gregos chamavam empiria, é nulo. Não há, em nenhum sentido forte da palavra “mundo”, base e fundamento. A filosofia é, pelo contrário, a própria negação dessa palavra: o encontro consigo mesmo, com o sujeito que sempre está na contramão do dado, a gênese da própria consciência. Juan Castro, pelo contrário, caiu no mundo, contaminou-se de empiria, geriu o dado (seja o dado imediato, o fenômeno, ou mesmo aqueles dados, que costumam chamar data, sem os quais não é possível o load average do sistema). O poeta almeja a totalidade (da realidade concreta e também da artificial — a exemplo do todo de uma linguagem inventada, à maneira dos lógicos). Por isso, o poeta busca, desde o início, a lei de todos os sistemas, que move planetas, que faz crescerem as plantas, que coordena o cérebro. Mas essa não é apenas a lei da totalidade empírica e atual do mundo — o que aí está, como se poderia supor a partir das referências às narrativas míticas de origem (quando a causa de tudo era um theós — “A Musa e a Poesia das Sombras”), ou como na referência às leis científicas e universais da arkhé e da natura (de Eratóstenes medindo o tamanho da Terra aos princípios de Zermelo-Fraenkel, passando pela hipótese do multiverso). Há também, é verdade, uma tentativa de apreender, através da investigação lógica da contingência, da contemplação do possível, daquilo que não é interdito ao pensar (nas palavras de Kant). Interpretação de Muitos Mundos é sobretudo um esforço de meter-se nas “brechas” do “regulamento” (como Juan mesmo escreve), de modo a enfatizar, mediante textos (poesia? prosa?), as potencialidades da história real e possível, dos mundos possíveis. Haveria, aí, uma atmosfera leibniziana (sugerida em textos como “Pequenos Drops de um Mundo Melhor”, “1958” e nas versões da “Terra”) que areja o caminho deste livro? 

Esse voltar-se ao mundo, empírico e histórico, real e virtual, redunda num tratamento da linguagem: o enunciador não quer perder-se nas encalacradas da subjetividade, não insiste em si mesmo, não se ensimesma. Na verdade, explora, como em poucos livros, a função apelativa: o livro sai de si, confronta o leitor e, como não poderia deixar de ser, empreende um diálogo propositivo, teórico, hipotético, algo como: “imagine”, “pense comigo”, “e se...”. O poeta, então, se se distancia do filósofo ensimesmado, aproxima-se do “cientista mundano”, para quem restou interpretar o “mundo”, o “vasto mundo”, que o filósofo, como Fichte, tão preso à natureza de suas representações, manteve proibido. Juan propõe, em um livro que não é inteiramente prosa nem inteiramente poesia, aquilo que o físico Hans Christian Ørsted chamou, pela primeira vez, Gedankenexperiment, quer dizer, um experimento mental. 

Eliakim Ferreira Oliveira




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