TUDO É FICÇÃO (a propósito de uma conversa entre Borges e Susan Sontag)
Borges diz que o mundo inteiro é ficção. Até a filosofia
é ficção, ele destaca. Li O livro de
areia, que ele cita. Num dos contos, Borges, numa praça da Inglaterra, se
não me falha a memória, encontra-se consigo mesmo jovem numa praça de Buenos
Aires. Note bem: o velho Borges numa praça na Inglaterra encontra-se com o
jovem Borges numa praça em Buenos Aires. E ambos eram Borges! Era uma
personagem, mas também era Borges, o autor,
que se põe como protagonista de sua ficção. Há ali a sobreposição de tempos e
espaços. A memória de Borges talvez seja a causa dessa sobreposição: dentro de
nós, convivem resquícios de nós mesmos, que fazem com que, numa mesma
narrativa, seja possível que um mesmo seja mais de um, e que, mesmo estando
aqui e agora, esteja alhures e algures. Penso que é nesse sentido, talvez, que
Borges diga que tudo é ficção: o que nós somos sem essas narrativas que
inventamos de nós mesmos? E que, se outro contasse, seria outra. Lembro de um
conto de Ficções. O "Pierre
Menard, autor do Quixote": Menard quer escrever o Dom Quixote, linha a
linha, sem que seja igual ao de Cervantes. Ele consegue o feito. E, segundo
Borges, fica muito melhor. O que eu quero dizer com isso é que nós vemos o
mundo através de esquemas de leitura que fazem com que nunca o acessemos
diretamente, o mundo mesmo (que é hipotético), mas dependemos de uma espécie de
espelho para vê-lo. Como quando olhamos um eclipse através do reflexo dele, porque,
se o fitarmos diretamente, danificaremos a vista. Isso faz com que, ao fim e ao
cabo, tudo seja, em certo sentido, ficção. Não podemos nos furtar aos esquemas
segundo os quais vemos o mundo, e sem os quais provavelmente não poderíamos
vê-lo. Os esquemas em geral são narrativas. A gente sempre está às voltas com
as narrativas, inclusive, porque é o que constitui nosso mundo. Quando falta a
palavra, o esquema, não é que não possamos dizer o mundo. É que não há mundo
para ser dito. E talvez por isso seja tão difícil traduzir, como sugere Borges,
os haikus do japonês: são esquemas heterogêneos aos ocidentais,
intransponíveis. Não me admira, ainda, que Flaubert, após escrever trinta e
tantas vezes o mesmo trecho de 'Madame Bovary', caísse em prantos: o mundo dele
é que estava em questão.
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À direita: Susan Sontag em Paris (2002). Fotografia: Annie Leibovitz. À esquerda: Borges em Central Park (NYC). Fotografia: Diane Arbus |
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