Conto: OS CÍRCULOS DO INFERNO

Inferno vertical para o amor horizontal.

Roberto Bicelli

          Na Boca do Lixo, há os inferninhos e há o inferno. Entra-se discretamente, como quem não quer nada, dá-se de cara com Caronte ou Virgílio. Seja o barqueiro do Hades, seja o guia turístico do inferno de Dante, é preciso dar alguma coisinha a ele. Dois, três reais. Cumprimentá-lo, perguntar como anda o movimento, até que horas ele trabalha hoje. Virgílio-Caronte sorri, pergunta-lhe se vai chover, ao que você dirá: deu uns pingos. Acho que mais tarde chove. "Logo na hora que eu vou embora", ele dirá. Apertará os mil e um botões. O primeiro círculo, o segundo, o terceiro... até o nono. E então Virgílio-Caronte o abandona. É preciso descer a pé. Mas não se empolgue: em todos os círculos, só há uma pecadora: Francesca da Rimini. Você, meu caro, provavelmente é Paolo. Cada Francesca vai atentá-lo, oferecer-lhe, como Eva, a maçã da árvore da ciência do bem e do mal. Se você foi lá só pelo turismo, não aceite. Uma vez aceita a maçã, não há volta: trinta reais, biombos encardidos e um cheiro de luxúria. Sim, em cada um dos nove círculos do inferno, você descobrirá que a luxúria tem mil e um odores. Mesmo nove rodadas de chope não vão fazê-lo esquecer dos odores dos nove círculos.
            Francesca tem muitas caras. Morena, loira, negra, magra, gorda, com e sem celulite. Com e sem dente. Mas sempre com aquele lindo sorriso, um sorriso que pede e que quer dar. Francesca olha-o com gozo. Goza antes dos espasmos. Muita vez, agarra, sem consentimento, o pênis de Paolo. Faz parte do know-how. Mesmo que você diga "só estou descendo" ou minta e diga que "já fiz, estou indo", ela dirá: pois faça de novo! E sua perna há de tremer diante da maçã. É uma vida gozada. Por isso extremamente condenável: ela goza sem ter para quem gozar, goza, mesmo na solidão.
            De volta ao primeiro círculo:
            — Tchau, tchau, Virgílio-Caronte, até a próxima!


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