Crônica: A OUTRA PASSANTE


A mais linda camisa rosa, com uns babados, debrum, calça de sarja branca, a sapatilha que combinava com tudo. Ela usava óculos, cabelos presos, castanhos claros, uma franja. Quarenta anos? O lábio carnudo brilhava. E o queixinho (ai, que queixinho!), o queixinho arrebitado, sempre arrebitado. Atende o celular. O sotaque do Recife, o mais lindo de todos, ela diz:
            — Tu tá bem? Tão desanimado ultimamente.
            Além disso, meu Deus, ela sabe se preocupar com o outro! Mas o outro tem um grande defeito: é um homem... Olho as mãos dela. Aliança na mão esquerda. Não tem problema. Não tenho ciúme. Que eu seja o grande outro.
            Assim que ela se levanta, me levanto também. Paro diante dela. Ela me encara encabulada. Não resisto:
            — Essa camisa é linda, linda. E fica mais linda ainda em você.
            Ganho um sorriso! Um sorriso alvo, luminoso, linguinha rosa, o canino, chego a ver o sininho da garganta.
            — Obrigada! — ela responde.
            E ouço de novo aquela voz, agora em minha direção, contra o meu rosto. Me arrepio, ela me cumprimenta com o olhar e mais um sorriso. Volta a andar. Eu me viro para vê-la. Olho absorto o ir e vir do quadril. Mesmo longe, ao fim do corredor, mesmo quando ela entra em outro, prestes a não ser vista, olho, torço o pescoço, o máximo que eu puder — ela indo embora.

São Paulo, 19-3-2019

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