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Mostrando postagens de fevereiro, 2019

Comentário: LEMBRA A 'VIDA COMO ELA É'

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        Ontem, uma moça, comentando o conto Boa noite, minha velha , disse que lembrava A vida como ela é , de Nelson Rodrigues. Embora não seja uma forte influência no que escrevo (pelo menos não uma influência consciente), me senti lisonjeado com a comparação. A primeira vez que li Nelson Rodrigues foi em 2013, sob a tutela do meu guia espiritual Bernardo Fonseca Machado (ator, diretor de teatro, antropólogo pela USP): um projeto de direção da peça Vestido de Noiva . Também vi recentemente uma entrevista de Marçal Aquino em que ele destacava a autenticidade dos diálogos de Nelson, incluindo-o no rol dos grandes dialoguistas do Brasil. Nelson dizia que o problema do escritor brasileiro "é não tomar cafezinho". Por isso escreve mal os diálogos: não ouve o povo conversando.             Esse concurso de acontecimentos em torno de Nelson é claro sinal de que tenho que voltar a lê-lo. São Paulo, 23-2-2019 ...

Crônica: A FÁBRICA DE HISTÓRIAS

           Chamei-o da janela. Acho que ele estava lavando as roupas.             — O que é? - grita do quintal.             — Vem aqui, rápido - eu digo.             A passos de tartaruga, ele entra no quarto.             — O que é?             Olho nos olhos dele, digo:             — Me conta uma história.             — Não tenho nenhuma para contar agora - responde secamente, mau humor indiscreto e sincero.             Mal sabia ele que eu já sabia da resposta. Ninguém tem uma história para contar assim, de pront...

Crítica: A ÚLTIMA EDIÇÃO DO 'ANTES QUE EU ME ESQUEÇA', DE ROBERTO BICELLI (I)

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            Ele me disse ao telefone que uma moça qualificara sua poesia como filosófica. Eu lhe disse que, a meu ver, a qualificação não apreende o sentido de sua poesia, e que eu poderia falar sobre isso com ele depois. Falo agora. Começo aqui a pensar alto, embora essa discussão vá longe. Não ser filosófica é uma virtude. Em geral, dizem que a poesia de Drummond é filosófica. Claro Enigma , Lições de coisas : Drummond constantemente se demor a em questões que ecoam a história da filosofia. Não, Drummond não faz filosofia, em absoluto, como nenhum poeta faz. Uma coisa é o poetar, outra, o filosofar. No entanto, muita vez parece que o que leva ao poetar é uma inquietude aparentada com aquela que leva ao filosofar (isso já dizia Aristóteles). Lembro de Drummond em poemas como "A Luis Maurício, Infante" e "Especulações em torno da palavra homem" (eu poderia citar muitos outros). O poeta se pergunta pela generalidade de certas coi...

Conto: BOA NOITE, MINHA VELHA

            Para Thaís Teixeira              — Desculpa a ignorança do papai. Ele não entende de amor.             Amor, órfão de pai e mãe, a mendigar, sujo e catarrento, o carinho do outro.             — Rosinha, o homem ficou brabo demais. Disse que eu tenho idade pra ser seu pai, e que, se continuar isso de eu com você, vai tratar de eu não ser pai nunca de ninguém: me corta os bagos — o homem põe a mão entre as pernas.             — Ah, Gemiro, ele quer que eu me case... — olha para a janela, mão na têmpora, suspiro profundo, um ai. — Que eu me case com o Reinaldo. Só um ano mais velho que eu, há de ser bacharel.             — E é bonito? — eriça a sobrancelha.     ...

Crônica: OS MELROS DO VALE DO RIO DOCE

            Poucos acreditariam em mim se eu dissesse que há melros no Brasil. Um pássaro com esse nome, no Brasil ? Eu acredito que haja aqui tuiuiús, sabiás, arapongas, jaburus, mas "melros"? Melro não é nome de pássaro brasileiro. Chamar um pássaro de melro é como chamar caqui de dióspiro. Mas eu não disse que melro é um pássaro brasileiro. Disse que há melros no Brasil. E digo mais: é um pássaro preto que costumava sobrevoar o Vale do Rio Doce. Ia de Aimorés a Caratinga. As árvores ficavam cheias de melros, um pretume, corvos diurnos a observarem os transeuntes.             Como um pássaro com um nome desses poderia viver no Vale do Rio Doce? É um pássaro colonizador. Veio da Europa e da África, catequizou os sabiás, ensinou um novo canto aos bem-te-vis e tomou todas as árvores vigiadas por tuiuiús, hoje pantaneiros, andarilhos sem rumo, de poça em poça.   ...

Conto curto como o bilhete do suicida: A GARÇONETE

            Bandeja na mão — quando é que essa noite acaba? —, a bela moça desfila entre mesas.             Ele a observa durante toda a bebedeira. Tenta prestar o máximo de atenção enquanto ela traz a cerveja. Agradece como se tivesse recebido o brinquedo que pediu ao Papai Noel.             — Mais uma rodada?             — Ó sim! Seria ótimo. Muito obrigado.             E lá chegam mais litros dessa cerveja amarga feito a vida.             — Como é mesmo seu nome?             — Paloma.             — Muito obrigado, Paloma!        ...

Contos tão curtos quanto o bilhete do suicida: AGENDA

O velho Zé encontra a agenda perdida. O papel amarelo, comido de traça, um nome: Rosa. Ó Deus, será aquela Rosa que frequentava os bares do Largo Treze? Não importa: tempo passou, seis números não dão uma ligação. Mas, e se... Zé, esperançoso, disca. Espera, espera. E vem aquela voz que faz úlcera no coração: - O número discado não existe.

Conto: UMA MESA DE TAMANHO NORMAL (inspirado num poema de Patrizia Cavalli)

             A verdade é que ela prefere as grandes distâncias. Olha para o céu, uns cirros mais afastados dos outros, abre-se entre essas nuvens um vão azul que só vai aumentando. Ela se imagina um cirro indo embora, e, quando perto do outro, que seja à distância, léguas, quilômetros. Não suporta a falta de espaço que são os céus repletos de cumulonimbus.             — A verdade, Mário, meu amor, é que eu não queria estar aqui com você — eleva a sobrancelha, tão superiora que é.             — Mas você disse que me amava... — o homem, acabrunhado diante daquilo que julga ser mais um dos tantos descasos da moça.             — Mário: você se lembra de quando eu tive que ir para a Europa?             — Que falta me fez! — abaixa ...

Conto: A FUTURA SOGRA, UMA DEUSA

O mocinho, entusiasmado, prepara-se para conhecer a mãe da amada. - A semana inteira penteando o cabelo. Tem resposta para tudo: "Trabalha com o quê? Seu pai? É de boa família? Cristão? Vai casar?" - Não tem erro - diz ao espelho. - Sei tudo de cor. Imagina dona Verônica alta, elegante, olhar de quatrocentona. - Onde ela mora, amor? - Piracicaba. É de Piracicaba, mas dos mais elegantes de lá: deve ser dona de alta fidúcia, latifúndios, mil e um homens a seus pés. "Nem a conheço, já sou o genro amante e amado!" Chega o dia: banho de rosas, tira a mais profunda cera do ouvido, o pelo mais remoto do nariz, passa brilhantina, lambe a mão, faz topete que inveja até calopsita, põe camisa com goma, calça que faz volume: Deus, que homem! Na casa da futura sogra, teque-teque na porta. - Quem é? - grita de dentro, voz grave de cigarro, taquara gutural. "Deve ser a copeira, que não tem modos finos", pensa o mocinho. - É Décio, futuro genro de madame Ver...

Crônica: OS HOMENS TRISTES

          Perguntaram-me por que homens tristes, por que "meus homens tristes". A pergunta não tinha um tom de reprovação, mas nela se notava uma pitada de estranheza diante da legenda do desenho, como quem, por baixo, às escuras, perguntasse "por que você fez isso? você, que podia ter feito outra coisa, fez justo essa? por que não 'homens felizes', os 'seus homens felizes'? por que não a felicidade em lugar da tristeza?" Queria ter uma resposta. Perdoe-me, por favor. O leitor começa a se irritar com tanta desculpa ("você vive de desculpas"), com essa perda de tempo que tece todo texto: mais um texto que não dá resposta, ao lado de tantos outros que fazem a maldade de perguntar e me deixar aqui, na mão. Tenho muita coisa para fazer. O mundo nada mais me oferece, e eu venho aqui gastar o tempo com você, e você só me faz fazer hora. O leitor terá sua razão. É verdade. Para que propor uma questão se não há resposta? É como quem o convida par...

Pequena crônica: FILÉ DE PIRARUCU

Passeávamos pelo shopping e conversávamos sobre aquela piada do pirarucu, você conhece? O garçom chega com o filé de peixe na bandeja, serve à madame. Ela olha para o peixe e pergunta: - Pirarucu? - Tiraram sim, senhora - o garçom responde. Rimos da mesma piada pela sexta vez. Mas o meu amigo foi muito além. Na verdade, a madame faz outra pergunta: - Esse filé é de quê? - É de pirarucu, minha senhora. - "Pirar o cu"? Não, meu filho, traz outro. Esse é demais. A barriga doeu de tanto rir.