Conto: BOA NOITE, MINHA VELHA


            Para Thaís Teixeira

             — Desculpa a ignorança do papai. Ele não entende de amor.
            Amor, órfão de pai e mãe, a mendigar, sujo e catarrento, o carinho do outro.
            — Rosinha, o homem ficou brabo demais. Disse que eu tenho idade pra ser seu pai, e que, se continuar isso de eu com você, vai tratar de eu não ser pai nunca de ninguém: me corta os bagos — o homem põe a mão entre as pernas.
            — Ah, Gemiro, ele quer que eu me case... — olha para a janela, mão na têmpora, suspiro profundo, um ai. — Que eu me case com o Reinaldo. Só um ano mais velho que eu, há de ser bacharel.
            — E é bonito? — eriça a sobrancelha.
            — Bem mais bonito que você...
            — Mas não te ama como eu te amo — o velho lhe tasca um beijo, ela cruza as perninhas. — Posso dar mais um?
            — Só mais um, que hei de ser casada com um bacharel — dá um tapinha no rosto dele.
            — Se me deixar dar dois, o terceiro é de amor.
            — Só mais um, Gemiro. Entre nós não dá sol.
            O um beijo mais longo que o homem deu. Salgado da lágrima que escorre.
            — Gemiro, é a primeira vez que vejo um homem da sua idade chorar. Eu pensei que velho não chorasse.
            O pobre homem baixa a manga da camisa, enxuga o rosto molhado.
            — Você sabe que um dia te vi de braço dado com ele?
            — Então por que perguntou se ele era bonito?
            — Perguntei se era bonito para você, Rosinha.
            — Que nem você, que passou a engraxar o sapato depois que começou a frequentar nossa casa?
            — Que nem eu, que sou feio, mas bonito lhe pareço — pega a mão dela, começa a acariciar as falanges como se as contasse, pegar nas dobras dos dedos, conferir se estão todos lá, belos e macios.
            — Papai ficou tiririca quando você mandou aquelas flores. Jogou o buquê no meio do quintal. "Velho safado!", ele gritava, "amigo da onça". Pisou. Foi flor para todo lado. Eram o quê? Esses antúrios que você tem no quintal?
            — Eram rosas para a Rosinha — põe-lhe a mão na bochecha. Depois do choro, o sorriso. — Mas o que vai ser de mim, Rosinha? Sozinho aqui, Maria morreu, o cão morreu de fome, a mãe morreu de desgosto. Rosinha, você é minha razão de viver, meu moranguinho de saia.
            — Você diz isso porque é velho e eu sou nova. Velho não resiste quando vê roupa de colégio, é o que papai diz.
            — Não diz uma coisa dessas, menina. Sempre fui muito respeitoso. Mas você... Você lembra tanto a finada Maria.
            — Lembro no quê?
            — O rabo de cavalo, a fita no cabelo, esses olhos de gude. Sem falar no cheiro doce entre as pernas...
            — Ah, Gemiro, todas são assim!
            — Todas não. Só a Maria e a Rosinha.
            —... — faz bico.
            — Dá cá outro beijo!
            Ela não resiste.
            — Este é de amor! — ele diz.
            — Também te amo, Gemiro. Mas você é velho. Tem idade para ser meu pai.
            — Minha filha, eu tenho idade para ser seu avô.
            Fim de tarde. Ela se veste, Gemiro abotoa a camisa, põe as calças.
            — Esse é o último — dá um beijo. Dessa vez o choro é dela.
            A porta bate. Gemiro tira a foto de Maria da carteira. Põe no porta-retratos sobre o criado-muro.
            — Boa noite, minha velha. 


           
           
           
           
             

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