OS SUSSURROS DE RUY FAUSTO: a propósito da morte do filósofo
O relato não é apenas meu. Era comum ver o professor Ruy
Fausto murmurando pelos corredores. Mesmo quando ia estudar na biblioteca,
punha-se a ler Marx aos sussurros, como se, de pronto, ao texto respondesse —
assim nos exigem em filosofia: ler o texto em guarda, para perguntar-se pelo
sentido de quase tudo que no texto aparece. Ruy Fausto parecia levar o adágio a
ferro e fogo, e, como monge medieval (baixo, curvado, penitente), orava em cima
do livro e repetia, para si mesmo, à biblioteca e
aos corredores, aquelas orações. Exagero, claro. Mas é que assim a coisa me
parecia. Não era oração, evidente, sobretudo pelo texto ser, em primeiro lugar,
filosófico, em segundo lugar, de Marx. Talvez era esse o sinal ético da
profundidade de pensamento, que logo é percebida nas primeiras páginas de Marx: lógica e política, que li de
maneira selvagem e aos trancos, para uma entrevista da qual, no fim, não
participei.
É
interessante pensar, nesse sentido, em quantas horas de sussurro devem ter sido
gastas, disciplinadamente, para alcançar a complexidade dos dois calhamaços que
eu tinha em mãos. E aí pensei também em quantas horas de penitência são
necessárias para pensar filosoficamente, para contribuir originalmente para e
não passar despercebido por isto que costumamos chamar filosofia. Deambular e
deambular pelos corredores, imitando o Ruy, a murmurar toda a estrutura lógica,
de modo a encontrar-lhe a chave, desvendar-lhe o enigma, pô-la de ponta cabeça
— tal como (e aqui exagero) um monge que, entre a Bíblia de Moisés e Cristo e a Metafísica
de Aristóteles, faz nascer uma nova filosofia, ou (e aqui sou mais preciso na
comparação) aquele Marx das doze horas de estudo na Biblioteca de Londres, a
revirar a tal da dialética.
Eliakim Ferreira
Oliveira, São Paulo, 1-5-2020
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