O crítico literário e poeta Alexandre Shiguehara escreveu sobre o 'Enciclopédia de História Natural'

 

O novo livro de contos de Eliakim Ferreira Oliveira, Enciclopédia de história natural, tem um prefácio breve e instigante, assinado pelo próprio autor.  Em poucas linhas, ele registra uma percepção da etapa presente do seu percurso de intelectual e escritor: “(...) estou mais velho do que antes, e as coisas, em vez de se ordenarem à visão, abraçam o péssimo do desajuste.” A inquietação vem, conforme a explicação de Eliakim, do contraste com a sua expectativa anterior  (“a esperança de que, mais velho do que fui, o tempo me trouxesse mais nitidez – me concedesse, por insistência, a impressão de mais ordem nas coisas, sem excesso nem falta”).

            Segundo a conhecida definição de Antonio Candido, na literatura clássica a linguagem corresponde ao mundo, sem excesso (caso do Barroco) nem falta (caso do Romantismo). A expectativa de Eliakim em relação ao próprio amadurecimento, assim,  parece estar relacionada à procura de um ajuste difícil, de uma ordem na qual seja possível certa equivalência das palavras às coisas. Mas não há ingenuidade na busca, e o ficcionista não se mostra disposto a negligenciar a ostensiva desordem do nosso mundo.

            Talvez seja plausível interpretar como resposta a esse impasse o fato de que muitos dos contos da Enciclopédia de história natural constituem, cada um isoladamente, universos ficcionais únicos, com premissas particulares e irrepetidas. Dada a impossibilidade de apreender e representar o mundo contemporâneo – num registro de realismo estrito – com o nível desejado de nitidez, equilíbrio e adequação, o escritor trata de imaginar os seus mundos próprios, frequentemente criando modos inusitados para as relações entre pessoas e bichos, havendo ou não aí um lugar para o elemento fantástico.

            São exemplares, neste sentido, “Resenha às Crônicas de Sidéria”, “O boi”, “O assassinato do apuizeiro” e “Os restos”. Cada frase, cada palavra neles parece dar mais consistência e tornar mais verossímil o respectivo universo ficcional –  não sendo este, por isso,  menos estranho,  e sim, tanto mais atraente graças a essa mesma estranheza.

            Os contos mencionados (e outros do livro)  me parecem realizações formidáveis de um escritor cada vez mais dono de seus recursos e cada vez mais imaginativo. A sua linguagem sempre densa tem às vezes um aspecto quase vetusto, mas temperado de um humor esperto e rejuvenescido a cada linha pela capacidade de invenção e surpresa.

            Embora mais velho do que já foi, Eliakim continua sendo um jovem escritor (omitirei a comparação em tal quesito com este seu leitor e amigo). O fato de ser a essa altura da vida um artista consumado não deve impedir, imagino, que siga em movimento e sempre à procura. A inquietação me parece inerente à sua personalidade, tendo em vista essa ainda curta e já tão profícua carreira de escritor, poeta e crítico.


Alexandre Shiguehara é poeta e crítico, autor de Ao longo do rio: João Cabral e três poemas do Capibaribe (Hedra, 2010) e Refugiado (poemas, Córrego, 2022).




Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Ensaio: RUBENS RODRIGUES: O "STRIP-TEASE" DA PALAVRA

O poeta, tradutor e crítico literário Anderson Lucarezi comentou a respeito do 'Enciclopédia de História Natural, contos'