A HISTÓRIA DA FILOSOFIA DA CIÊNCIA COMO DISCIPLINA FILOSÓFICA: UMA RESENHA À NOVA TRADUÇÃO DE 'O DESENVOLVIMENTO MODERNO DA FILOSOFIA DA CIÊNCIA (1890-2000)', DE CARLOS ULISES MOULINES

 Texto originalmente publicado na Revista Páginas de Filosofia, v. 9, n. 2, p. 221-229, jul.-dez., 2020. 



No segundo semestre de 2020, Cláudio Abreu trouxe ao público filosófico de língua portuguesa uma tradução de O desenvolvimento moderno da filosofia da ciência (1890-2000) (Associação Filosófica Scientiae Studia), do renomado filósofo venezuelano Carlos Ulises Moulines, conhecido por seus trabalhos em torno da reconstrução de teorias segundo a chamada "metateoria estruturalista". Moulines nasceu em Caracas, em 1946. Formou-se em filosofia pela Universidade de Barcelona em 1971 e doutorou-se em 1975, sob a orientação de Wolfgang Stegmüller, o qual substituiu, em 1993, como diretor do Instituto de Filosofia, Lógica e Teoria da Ciência da Universidade de Munique, cargo que ocupou até 2012, ano de sua aposentadoria. Em sua produção intelectual, destacam-se as Exploraciones metacientíficas (1982), livro bastante influenciado pelas contribuições de Suppes, Sneed, Stemüller e Balzer às "concepções modelistas" da ciência (cf. MOULINES, 2020, p. 165). Nesse livro, Moulines não só desenvolve uma filosofia da física, como também se ocupa de aspectos relacionados com a história da filosofia e a história das demais ciências, promovendo desde uma crítica à visão ortodoxa de teorias e à tradicional filosofia da ciência até a apresentação do núcleo de sua proposta de reconstrução de teorias científicas a partir de modelos. "Os modelos de uma teoria são os correlatos formais das peças da realidade que a teoria explica", escreve Moulines (1982, p. 78). Ou também, em um texto complementar: "Um modelo é uma estrutura construída por meio dos conceitos da teoria que abrange o domínio experencial que pretendemos estudar (de forma mais ou menos idealizada)" (MOULINES, 2018, p. 302). E assim a proposta do filósofo venezuelano estabelece entre a teoria (seu quadro conceitual e as afirmações nela contidas) e o domínio em questão, enquanto um construto modelar, uma relação entre estruturas, em que a teoria representa o domínio em questão.   

            Começamos por apresentar a proposta filosófica na qual Moulines se insere porque ela é, justamente, o tema do último capítulo de O desenvolvimento moderno da filosofia da ciência (1890-2000) (capítulo 6: "Concepções modelistas e afins (1970-2000)"), em que o filósofo não só se insere no próprio recorte do desenvolvimento da filosofia da ciência, como também encontra ocasião para, tal como nas Exploraciones metacientíficas, tecer uma crítica à visão ortodoxa de teorias científicas (apresentada no capítulo 3: "Fase de eclosão (1918-1935)"). A concepção de teoria científica que foi desenvolvida a partir dos trabalhos do Círculo de Viena, cuja epistemologia geral é conhecida como "positivismo lógico"[1] (MOULINES, 2000, p. 57), concebia o significado de uma teoria científica como vindo, em última instância, da experiência. É o que se pode chamar de "infiltração ascendente" (consequência do "verificacionismo" (MOULINES, 2020, p. 75 e ss; cf. FEIGL, 2004, p. 269)), porquanto o sistema de postulados não-interpretados, que constitui a parte formal da teoria, é entendido como "flutuando" ou "pairando" "livremente acima do plano dos fatos empíricos" (FEIGL, 2004, p. 267; cf. MOULINES, 2020, p. 57-72), os quais lhe dão significado cognitivo. Nessa visão, é fundamental, portanto, uma distinção entre teoria e observação ou, mais exatamente, entre linguagem teórica e linguagem observacional. É nesse sentido que as teorias são definidas por esse padrão como sistemas dedutivo-axiomáticos. A porção meramente teórica, sendo formal (um sistema de símbolos), precisa ser interpretada empiricamente, isto é, confrontada com o "solo da experiência". Para isso são necessárias as chamadas regras de correspondências, pelas quais termos teóricos, puros ou mistos, são interpretados empiricamente (cf. MOULINES, 2020, p. 97 (ver também: FEIGL, 2004, p. 268-9; BUNGE, 1976, p. 196-7; SUPPE, 1972, p. 3-9)), de modo a resultar numa teoria científica. A partir dessa visão, a tarefa da filosofia da ciência deve ser uma reconstrução lógica dessas teorias. Aqui vale, portanto, a distinção entre "análises no contexto da descoberta" e "análises no contexto da justificação". Na medida em que a tarefa da filosofia da ciência é uma reconstrução lógica das teorias científicas, há "pouco interesse pela análise da ciência desde uma perspectiva diacrônica, ou seja, a perspectiva que toma em conta a dimensão histórica das teorias científicas" (MOULINES, 2020, p. 127). Nesse aspecto, destaca-se o caráter normativo — e não descritivo — do estudo das teorias científicas segundo as fases de "eclosão" e "clássica" da filosofia da ciência.

            Muitos dos pressupostos assumidos por essa visão foram colocados em disputa. Moulines dedica os capítulos 4 ("Crise do positivismo lógico e consolidação da filosofia da ciência clássica (1935-1970)") e 5 ("Fase historicista (1960-1985)") ao desenvolvimento dessas críticas, que resultam em novas concepções sobre o significado cognitivo de teorias científicas. No que concerne, por exemplo, à distinção entre linguagem observacional e linguagem teórica (cf. MOULINES, 2020, p. 88), podemos citar as críticas de Hilary Putnam, muitas das quais dirigidas à dificuldade tanto de definir termos inobserváveis quanto de delimitar o domínio dos termos observacionais (cf. PUTNAM, 1991, p. 304-5); também podemos citar as críticas de Norwood Russell Hanson, que buscou mostrar a inseparabilidade de observações e interpretações (a tese da "impregnação teórica da observação" (cf. MOULINES, 2020, p. 141; HANSON, 1975, p. 127-34)); e principalmente as duras críticas de Feyerabend (cf. MOULINES, 2020, p. 142-6), nas quais nos concentraremos na medida em que também põem em questão as distinções entre análises no contexto da descoberta e análises no contexto da justificação e entre normatização e descrição, justificando, a nosso ver, muitos pressupostos da abordagem adotada por Kuhn, como exposta no capítulo 5 ("Fase historicista (1960-1985)") de O desenvolvimento da filosofia da ciência (1890-2000).  

            A recusa por Feyerabend das distinções entre contexto de descoberta e contexto de justificação, entre normas e fatos e entre termos observacionais e termos teóricos está diretamente relacionada ao desempenho nulo que essas distinções exercem, segundo o filósofo, na prática científica (cf. MOULINES, 2020, p. 142 e ss). O que Feyerabend procura mostrar é que, mesmo que a análise filosófica faça distinções precisas, é necessário que elas reflitam conceitos analíticos, pré-filosóficos ou pré-sistemáticos. Em outras palavras, essas distinções devem refletir algo da prática científica. O destaque dado à prática científica já é, aliás, uma mudança com relação à visão ortodoxa, que se restringia, como dito, à reconstrução lógica de teorias, sem levar em conta seu aspecto prático. Assim, se o filósofo da ciência preterir a prática científica, ele assumirá a distinção, por exemplo, entre o contexto de descoberta e o de justificação, na medida em que "a descoberta (...) pode ser irracional e não precisa seguir nenhum método reconhecido" (FEYERABEND, 2003 [1970], p. 207); já a justificação "começa apenas depois que as descobertas tenham sido feitas e procede de maneira ordenada" (ibidem). No entanto, a questão é em que medida essa distinção reflete uma diferença real. A ciência pode avançar sem forte interação entre esses domínios? A resposta de Feyerabend é negativa: "(...) o mais superficial exame (...) mostra que determinada aplicação dos métodos de crítica e prova, que se diz pertencerem ao contexto de justificação, eliminaria a ciência como a conhecemos — e jamais teria permitido que surgisse" (FEYERABEND, 2003 [1970], p. 208).

            Ora, mas a ciência existe. Logo, pode-se afirmar que esses métodos foram frequentemente desconsiderados — e desconsiderados por procedimentos que pertencem ao contexto da descoberta. Desse modo, a diacronia de uma teoria científica não é irrelevante para os padrões de teste, uma vez que resulta na crítica destes — "desde que", Feyerabend adverte, "os dois domínios, o da pesquisa histórica e o da discussão de procedimentos de teste, não sejam mantidos separados por decreto" (FEYERABEND, 2003 [1970], p. 208). Na verdade, nem podem ser entendidos como se movendo lado a lado, pois muitas vezes estão em flagrante conflito. Basta que se note que, na prática, os cientistas muitas vezes empregam procedimentos proibidos pelas regras metodológicas. Assim, "interpretam a evidência de modo que se ajuste a suas ideias extravagantes, eliminam dificuldades mediante procedimentos ad hoc, colocam-nas de lado ou simplesmente recusam-se a levá-las a sério" (FEYERABEND, 2003 [1970], p. 209). Nesse sentido, não parece haver uma diferença entre contextos, mas uma mistura. E separar os contextos e desfazer a mistura possivelmente arruinaria a ciência como a conhecemos. Um argumento similar pode ser aplicado à distinção entre normas e fatos ou entre prescrições metodológicas e descrições históricas. Afirma-se que a metodologia, referindo-se ao que deveria ser feito, não pode ser criticada por meio da referência aos fatos, ao que é. No entanto, Feyerabend nos diz que "precisamos (...) assegurar-nos de que nossas prescrições disponham de um ponto de ataque no material histórico, e precisamos também assegurar-nos de que sua aplicação determinada conduz a resultados desejáveis" (FEYERABEND, 2003 [1970], p. 209-210). Ora, nesse sentido, um procedimento de análise de teorias científicas que procura estudar cuidadosamente "a dinâmica aristotélica, a química flogística ou a termodinâmica calórica" (KUHN, 2006, p. 21), como o de Thomas Kuhn, torna-se justificável.

            A proposta de Thomas Kuhn, sobre a qual Moulines se debruça na seção "Paradigmas e incomensurabilidades, programas e tradições de pesquisa" (2020, p. 127) se insere na chamada "virada historiográfica" da década de 1960. O que Moulines destaca da proposta de Feyerabend é uma consequência das interpretações de A estrutura das revoluções científicas (1962). No entanto, Moulines destaca que simplesmente enquadrar todas essas propostas (não só de Kuhn e Feyerabend, como também de Lakatos e Laudan) como fenômenos de uma "virada historiográfica" é demasiado restritivo, uma vez que também "aportam uma perspectiva nova sobre a estrutura sincrônica das ciências, principalmente no que respeita ao conceito de teoria científica e a relação entre teoria e experiência" (MOULINES, 2020, p. 129). Para esses filósofos, com destaque a Kuhn e Feyerabend,

(a) uma teoria não é simplesmente um conjunto de princípios;

(b) sua relação com a experiência é diferente do que os filósofos clássicos, indutivistas ou falseacionistas, haviam vislumbrado;

(c) quando uma teoria, considerada "melhor", sucede a outra teoria mais antiga, a relação entre as duas não é de redução (...) (MOULINES, 2020, p. 131).  

            Da interpretação dessas teses, nasce a noção kuhniana de paradigma, espécie de "visão de mundo" que determina um modo de conceber teorias científicas, caracterizado por generalizações simbólicas próprias, não redutíveis a outro paradigma.

            A última fase da história da filosofia da ciência, que ocupa aproximadamente as últimas três décadas do século XX, é, para Moulines, difícil de enquadrar a partir de características comuns aos autores e correntes que desempenharam, ou ainda desempenham, um papel significativo durante essa fase. A noção específica de modelo, no entanto, pode ser tomada como centro em torno do qual gravitam os conceitos das concepções modelistas de teorias. Será essa noção que permitirá uma nova compreensão de como é construída e como funciona uma teoria científica (cf. MOULINES, 2020, p. 166). Nesse debate aparece novamente a velha questão — já enfrentada por filósofos alinhados à visão ortodoxa de teorias — da determinação do significado de conceitos científicos. Enquanto ponte entre a teoria e a experiência, a construção de modelos é uma importante ferramenta para a determinação desse significado. Essa noção de modelo, como destaca Moulines (2020, p. 170), remonta a desenvolvimentos da semântica formal, especialmente da obra de Alfred Tarski, que definiu modelo da seguinte maneira: "Uma possível realização em que todas as sentenças válidas de uma teoria T são satisfeitas é chamada de modelo de T" (Tarski apud Suppes, 2002, p. 18). E, nesse sentido:

Afirmar que o quadro conceitual de uma teoria pode ser interpretado num determinado domínio da experiência equivale a afirmar que esse domínio (ainda que de forma simplificada ou idealizada) pode ser concebido como um modelo dos axiomas da teoria (Moulines, 2018, p. 302).

            De modo a explicitar esses correlatos formais das peças da realidade, através dos quais se pode reconstruir uma teoria, empreende-se uma axiomatização por introdução de predicados conjuntistas (MOULINES, 2020, p. 168 e ss). Nessa reconstrução, os correlatos de cada peça da realidade são organizados em conjuntos que, por sua vez, são organizados em relações a partir das quais definições gerais da teoria podem ser estabelecidas. Essa ideia de peça da realidade é muito importante. Na medida em que há uma multiplicidade de modelos de uma mesma teoria, e que são determinados pela mesma lei fundamental, cada um desses modelos corresponde a diversas aplicações da teoria à realidade. Um modelo de TR pode corresponder, por exemplo, ao comportamento de corpos no centro da galáxia M87, à irradiação luminosa durante o decaimento de um píon neutro, à simultaneidade de eventos particulares, etc. Nesse sentido, não se pode postular a existência de um único modelo universal de uma teoria, uma vez que isso não se adéqua à prática do cientista, que aplica sua teoria apenas a pequenas peças da realidade.

            Os componentes de uma estrutura modelar da teoria na reconstrução estruturalista são os seguintes: o predicado conjuntista, que inclui a lei fundamental da teoria e que fixa seus modelos; as condições de ligação que conectam os distintos modelos entre si; a distinção entre modelos parciais e modelos teóricos, que permite dar um sentido preciso ao conteúdo empírico da teoria. Todos esses componentes, inter-relacionados entre si e formando uma estrutura complexa e geral, são denominados por Sneed núcleo da teoria (cf. MOULINES, 2000, p. 172; MOULINES, 1982, p. 85).

            A descrição sumária de cada um desses estágios do desenvolvimento da filosofia da ciência enquanto disciplina filosófica dá uma visão da extensão da narrativa de Moulines, que, em lugar de ser uma mera história panorâmica da filosofia da ciência, concede ao leitor uma visão dos problemas e do léxico conceitual que, até hoje, retornam às discussões dessa disciplina. O desenvolvimento moderno da filosofia da ciência (1890-2000) é, nesse sentido, um livro indispensável para quem deseja introduzir-se nos principais debates dessa disciplina, oferecendo, ainda, os recursos necessários para que o leitor se aprofunde em cada um desses momentos. Sem dúvida, um livro que deve entrar nas bibliografias das disciplinas introdutórias de filosofia da ciência no Brasil. Recomendamos com entusiasmo.

           

Referências bibliográficas

BUNGE, M. Tratado de filosofia básica. v. 1. Tradução Leônidas Hegenberg e Octanny S. da Mota. São Paulo: EPU, Ed. Universidade de São Paulo, 1976.

FEIGL, H. "A visão 'ortodoxa' de teorias: comentários para defesa assim como para crítica". Tradução Osvaldo Pessoa Júnior. In: Scientiae Studia, São Paulo, v. 2, n. 2, p. 265-77, 2004.

FEYERABEND, P. K. Contra o método. Tradução Cezar A. Mortari. São Paulo: Editora da Unesp, 2003 [1970].

HANSON, N. R. "Observação e interpretação". In: MORGENBESSER, S. (org.). Filosofia da ciência, pp. 125-138. São Paulo: Cultrix/Edusp, 1975.

KUHN, T. S. A estrutura das revoluções científicas. Tradução Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Editora Perspectiva, 2006.

MOULINES, C. U. Exploraciones metacientíficas. Madrid: Alianza, 1982.

__________ "A natureza e a estrutura das teorias científicas". Tradução Cláudio Abreu. Perspectivas — Revista do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFT — n. 2 — 2018.

_________ O desenvolvimento moderno da filosofia da ciência (1890-2000). Tradução Cláudio Abreu. São Paulo: Associação Filosófica Scientiae Studia, 2020.

PESSOA JÚNIOR, O. F. "O canto do cisne da visão ortodoxa da filosofia da ciência". In: Scientiae Studia, São Paulo, v. 2, n. 2, p. 259-63, 2004.

PUTNAM, H. "O que as teorias não são". In: CARRILHO, M. M. (org.). Epistemologia: Posições e críticas, pp. 299-326. Lisboa: Gulbenkian, 1991.

QUINE, W. v. O. "Dois dogmas do empirismo". Tradução Marcelo G. S. Lima. In: Os Pensadores – Ryle, Strawson, Austin, Quine, pp. 231-248. 2ª. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

SUPPE, F. "What's wrong with the received view on the structure of scientific theories?". In: Philosophy of Science, vol. 39, n. 1 (mar., 1972), pp. 1-19.

SUPPES, P. Introduction to logic. Princeton: Von Nostrand, 1957.

WINTHER, R. G. "The structure of scientific theories". In: ZALTA, E. N. (ed) Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2016 Edition). Stanford, CA: Metaphysics Research Lab / CSLI, 2016. (Disponível em: https://plato.stanford.edu/entries/structure-scientific-theories/ — Acesso em 04/01/2021).

 



[1] Com destaque às contribuições de Campbell, Carnap, Schlick, Reichenbach e mesmo às contribuições de Hempel e Neurath, todas abordas por Moulines (cf. 2000, p. 57-74. Ver também: FEIGL, 2004, pp. 265-6; SUPPE, 1972, pp. 2-3; WINTHER, 2016, p. 3/17; BUNGE, 1976, pp. 195-6).

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