4 poemas de 'Canteiro de obras' (Versos em Cantos, 2020)

 

Prefácio                        APOESIA

 

§1.                   Uma poesia sem poesia,

chã: que faz cair na terra

o nume, que torne o

nome um nada: mate

toda palavra, inative

qualquer verbo: seja

silêncio, muda como

é muda a terra, morta

e feia como o bramido,

e asfixiada como lama.

 

§2.                   Se leva o único nome

que sobeja — poesia —,

é porque pó, não suspenso,

imune ao vento: não

aguenta o próprio peso

— pó de construção civil

que pese mais que um

prumo, mas sem aprumar

nem aprumar-se. Pó que,

peso morto, entorte

um prédio, um viaduto,

asfixie o bronquítico

leitor que se o põe a ler.


Método      A ORDEM

 

§1.                   Pôr assim, termo a

termo, um como que

ajuntado ao outro:

como se cresse (em

silêncio) que esse

ajuntamento fosse

adjunto à ordem

de um fosso: o mundo.

 

§2.                   Juntar nisto aqui

como se junta

toda a gente para

a foto, ou, fio a

fio, os dentes do

pente ao cabelo,

frente ao espelho.

 

Rodapé             (Querer demais: que,

                             termo a termo, o

junto ao junto fosse

para o mundo como

é o penteado

diante do espelho.)

 

INSTRUÇÕES DE USO

(apud Rubem Fonseca)

 

A.

Não era uma ferramenta

como as outras, pois, feita

de mó e ao uso infensa,

não apertava o que se aperta,

mas o que a manuseia.

 

Como então usá-la,

aprender o seu ofício?

— Se cava e aguda,

arranha a madeira,

sem ser formão, sem

ser lixa ou talhadeira.

 

Se embaixo nascia um

mastro, se o mastro era

maciço e de madeira,

o uso é funilaria,

o ofício é de marreta.

 

Mas, em vez de amassar,

limava, sem ser lima,

entortava, sem ser

de pena, desempenava

à desempenadeira.

 

B.

Desista disto que

arranha a lata,

lhe faz fixa a fenda,

fura-a feito Philips,

quebra-a e a entorta,

ameaça, arrebenta.

 

Inútil ferramenta

que não se deixa

existir, que revira

o próprio uso, muda

a própria senha,

 

faz da mão uma perdida

e do uso um teorema.

(Do ofício uma invertida,

do próprio que a usa,

utensílio e ferramenta.)

 

 DA ARTE DE LIMAR, em reviravolta do pró e do contra

                A Luís César Oliva, filósofo, e Valdir Rocha, escultor

 

I. MOTE, pretensão dogmática

 

Tese                       A. limar a chapa

 

§1.

Limar, não tão longe

da arte da Makita

(cortar a aresta onde

 

o corte é quem dita).

Mas é um corte diferente

(não de cortar o mal pela raiz):

 

§2.

Puir o topo do dente,

ou a unha, ou (melhor)

a cabeça de um giz

(que se gasta e se acura

 

até resíduo, resto gris).

Limar: civilizar o metal,

tirar da lata a caspa,

puí-la ao brilho do verniz. 

 

 


Antítese                 II. Crítica ao poema anterior ("I, A")           

 

Poema sem escora,

fraco contraforte,

crê dizer algo da lima

quando diz do corte.

 

Não há corte por cima:

corte é ato por baixo.

Garrotear uma viga

é ir por baixo do caibro.

 

Corte é impor a linha,

limar é impor a dobra:

vencer o metal por esforço,

separar a chapa da sobra.

 

Corte é ato limpo e seco,

não há lima sem pó e sopro:

afastar da chapa o sobejo

como o vinho do mosto. 

 

 


 

 

 

Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Ensaio: RUBENS RODRIGUES: O "STRIP-TEASE" DA PALAVRA

Raquel Naveira, leitora de 'Canteiro de obras' e 'Polióptico'