CRÔNICA - O CONDE DE ST. GERMAIN EM SANTA CECÍLIA
Faz pelo menos sessenta anos que o
Lotito está ali, na mesma papelaria, os mesmos suspensórios, a mesma curvatura
da coluna, aquelas duas mulheres, uma que é esposa, outra que é irmã. Até hoje
ninguém sabe quem é uma e quem é a outra. Faz parte do mistério. É impossível
que ele esteja ali por tanto tempo e do mesmo jeito. Ele é mais novo que a
minha avó, mas a minha avó já o vira velho quando ela era mocinha. Como isso é
possível? Não é possível. A não ser que... Não, nem quero pensar nisso. É
melhor mudarmos de assunto... Não queria falar sobre isso com você. Você vai
achar que eu sou doido. Tudo bem, tudo bem. Eu falo. Mas não vá apregoar por aí
que eu, com vinte e três anos, já ando com os parafusos soltos. Lotito só pode
ser o Conde de St. Germain. Não tem dúvida. Ele deve ser filho ilegítimo ou de
Maria Ana de Neuburgo ou de D. João V de Portugal. Deve ter estudado na Itália
com o Grão-duque Gian Gastone. Tocou violino para Rousseau, encantou Horace
Walpole, lapidou joias em Versalhes, fez colares para Luís XV. O mímico Gower,
da corte do rei francês, chegou a dizer que ele teria conhecido Jesus Cristo.
Sobre ele, Voltaire teria dito: "Um homem que sabe tudo e nunca
morre". Ora, mas como ele veio parar no Brasil, você pergunta. Uma
pergunta tola, meu caro. Ele é o Conde de St. Germain! Além disso, aqui em São
Paulo, na região de Cajamar, há a Comunidade Merkabah Gurudeva, que transmite
ensinamentos a partir dos relatos em torno da figura do Conde. Não à toa, o
Conde está aqui, em Santa Cecília.
Fomos conversar com ele. Enquanto na
Europa ele chegou a impressionar Voltaire, no Brasil ele não impressiona
ninguém. Quer viver uma vida discreta, de papeleiro. Se a Kalunga vende por
vinte e cinco, ele vende por vinte e três. Aquelas pequenas canetas que giram
saem pela pechincha de nove reais e cinquenta centavos. Agora, o melhor eu
deixo para o fim: ele jogou no Corinthians. Bicelli e eu entramos na loja:
— Lotitinho! Lotitinho! — gritou o
Bicelli. — Conta aquela do goleiro do Corinthians.
— Eu jogava no Corinthians, time da
várzea do Bom Retiro, perto do Campo de Marte, sabe? E tinha acabado de chegar
lá um goleiro novo, muito tímido. Ele defenderia o primeiro pênalti no time,
mas tinha uma miopia braba. Ficou muito nervoso. Posicionou-se. Daí passou um
avião, fez sombra, ele pensou que era a sombra da bola e pulou para a direita.
Nisso o cara chutou para a esquerda e fez gol.
Rimos muito. O Conde de St. Germain
ainda preserva o humor da corte de Luís XV.
São Paulo, 20-2-2019
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