Polióptico: crítica de Felipe Lopes
Polióptico
Alguns poemas são como perfume, um deleite, um
enfeite, um adorno. Outros são como música, com tempo marcado, a forma regular.
Mas nenhum destes encontramos no Polióptico
de Eliakim Ferreira Oliveira. Estes poemas não podem ser lidos sem dificuldade,
como se o caminho da leitura estivesse cheio de pedras. As pedras do poema são
o impedimento do seguir suave. Nelas se vê a exigência de que, a cada momento,
quase a cada palavra, deva-se parar, refletir, olhar onde pisa. De vez em
quando se encontra uma rima, um ritmo, mas se dá de forma tão espontânea como
uma flor colorida na natureza ainda não modificada pelo humano.
O
estilo é comprometido com a concretude. As palavras usadas são os substantivos
concretos: o olho, o osso, os óculos, o coração. Os adjetivos, quando aparecem,
têm uma função apenas subsidiária. A matéria do poema é o fato, o bruto, o
minério não lapidado. A obsessão é encontrar a coisa mesma, até questionar se a
coisa mesma pode ser vista ou poetizada.
Isto
traz à luz outro elemento importante da obra: o fato de que este livro é, no
limite, uma investigação. Isto é reforçado pelo seu projeto. Nas palavras de
Alexandre Shiguehara: “Raramente nos deparamos com um livro de poesia como
esse, concebido e realizado a partir de um projeto.” Não só um projeto poético,
mas também de investigação. Dessa forma, podemos entender as divisões do livro
como estágios dessa investigação.
A
primeira parte consiste no elemento interno, subjetivo, sem ser subjetivista.
Investiga-se o que acontece no olho e por detrás dele, o que a retina pode
conter. Como se o olho, antes de ver o mundo, devesse ver a si mesmo; e, neste
ato desesperado, arranca-o da face para poder enxergar ("O olho do poeta").
Em outro poema, o olho, diante do espelho, percebe que não se pode ver. O olho
visto no espelho é apenas um avesso do olho, pois ele se orienta de dentro para
fora no ato de ver. O olho que é visto no espelho é apenas uma especulação,
como se o olho delirasse ao ser colocado contra si mesmo ("Especulações do
olho"). Para investigar o olhar, o poeta verifica o limite do próprio
método, ou seja, como é possível ver o olho se usamos o olho para ver? Este
problema é análogo ao da Crítica da Razão
Pura, de Kant, e ao da Fenomenologia do Espírito,
de Hegel, onde a consciência é incumbida da tarefa de entender o seu
funcionamento, seus limites e seu desenvolvimento. E, tal qual a consciência na
Fenomenologia, aqui o olhar, ao
tentar entender a si, é jogado para fora. Nesse momento, se coloca entre a luz e
a sombra.
Como
devemos notar, tanto a falta de luz quanto o excesso de luz impedem a visão.
Nesta parte, a investigação tenta medir a quantidade exata de luz que é melhor
adequada à visão. “É no claro-escuro que o olho vê” ("Lavoura escura").
Tal qual numa pintura de Caravaggio, é no jogo de luz e sombras que se faz o
quadro. Alguns dos poemas se dedicam ao que se esconde na sombra, aquilo que
não podemos ver, mistério e enigma. O que se esconde no escuro é a
possibilidade da figura divina que tudo vê ("Enigma"); a causa do que
é visto ("Das coisas invisíveis II"); um vulto que ameaça ("O
vulto"); ou o que tem por debaixo do vestido ("De Rerum Natura").
Em outros, se concentra na luz, como em “No olho do poema” ou em “Da
aparência”.
Na
última parte, os poemas tratam justamente do que se coloca no entremeio do
olho e da physis: a poesia. O espaço
da linguagem e da reflexão poética se colocam no caminho da percepção. O poema
está querendo “dar a ver o mundo” ("A poesia"). O poema são os óculos
do artista que se coloca entre ele e o quadro, modificando-o ("O espectador").
A força da poesia é dar a ver um mundo
novo, ser nossos óculos, buscar na sombra e na luz o que o mundo natural não
nos fornece. O elemento que justifica a obra é encontrado no primeiro poema, as
“Investigações do olhar”, que diz: “é que a physis
tem/ uma sombra que a luz natural/ não alcança. Só o pode/ a poesia.” A luz
natural, termo que designa o conhecimento humano, é incapaz de chegar aos
mistérios sombrios que a physis tem.
Dessa
forma, podemos ler o primeiro poema “A investigação do olhar” como um fio
condutor que orienta a leitura de todo o livro. Mais do que o relativismo da
multiplicidade de olhares, a investigação poética encontra o lugar da poesia no
ato de ver. No caminho da visão, que enxerga a si e ao mundo, fomos conduzidos
para a manifestação humana capaz de alcançar a sombra da natureza.
Felipe Lopes é formado em Letras e Filosofia, professor de língua portuguesa e autor de Conto e Reconto (Ed. Versos em Cantos).
Livro e poesia como investigação e projeto. Muito original.
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