Crônica: OS MELROS DO VALE DO RIO DOCE
Poucos acreditariam em mim se eu
dissesse que há melros no Brasil. Um pássaro com esse nome, no Brasil? Eu acredito que haja aqui
tuiuiús, sabiás, arapongas, jaburus, mas "melros"? Melro não é nome
de pássaro brasileiro. Chamar um pássaro de melro é como chamar caqui de dióspiro.
Mas eu não disse que melro é um pássaro brasileiro. Disse que há melros no
Brasil. E digo mais: é um pássaro preto que costumava sobrevoar o Vale do Rio
Doce. Ia de Aimorés a Caratinga. As árvores ficavam cheias de melros, um
pretume, corvos diurnos a observarem os transeuntes.
Como um pássaro com um nome desses
poderia viver no Vale do Rio Doce? É um pássaro colonizador. Veio da Europa e
da África, catequizou os sabiás, ensinou um novo canto aos bem-te-vis e tomou
todas as árvores vigiadas por tuiuiús, hoje pantaneiros, andarilhos sem rumo,
de poça em poça.
A mestiçagem permitiu que os
descendentes dos melros originários se aclimatassem sem que se notasse que
vieram de fora. Espalharam-se pela Argentina, Bolívia, Chile, Equador e Peru.
No Vale do Rio Doce, nem se dão conta da presença estrangeira que é o melro.
Pensam que é um canário da terra ou um rouxinol queimado de sol. Mas, se prestarem
bastante atenção, vão notar que têm ainda um leve sotaque. Cantam voltados ao
Atlântico, como se chamassem um parente esquecido em alguma savana africana ou
em algum terreno árido da Sicília, uma oliveira aqui, outra ali, cada qual com
a sua família de melros. No sul da Europa, inclusive, há quem os confunda com
os tordos. Não sem alguma razão. Os melros não deixam de ser primos dos tordos,
com os quais, durante séculos, disputaram galhos e insetos.
É bom lembrar que o bico do melro é
um tanto mais fino. Não é uma ave que faça grande esforço para romper uma
castanha. Preferem enfiar o bico, cavar, sorver o sumo. Por isso não
estranharam muito os rouxinóis, estrangeiros mais longínquos, que aos melros
pareceram irmãos do Velho Mundo.
Mas já não há muita diferença entre
os melros e os demais pássaros do Vale do Rio Doce. Todos se sentem meio
apátridas, aves sem-terra e sem chão, naquele mar de lama que não é para
pássaro nenhum.
Graças aos "melros" que governam e mandam.
ResponderExcluir