Crítica: A ÚLTIMA EDIÇÃO DO 'ANTES QUE EU ME ESQUEÇA', DE ROBERTO BICELLI (I)



            Ele me disse ao telefone que uma moça qualificara sua poesia como filosófica. Eu lhe disse que, a meu ver, a qualificação não apreende o sentido de sua poesia, e que eu poderia falar sobre isso com ele depois. Falo agora. Começo aqui a pensar alto, embora essa discussão vá longe. Não ser filosófica é uma virtude. Em geral, dizem que a poesia de Drummond é filosófica. Claro Enigma, Lições de coisas: Drummond constantemente se demora em questões que ecoam a história da filosofia. Não, Drummond não faz filosofia, em absoluto, como nenhum poeta faz. Uma coisa é o poetar, outra, o filosofar. No entanto, muita vez parece que o que leva ao poetar é uma inquietude aparentada com aquela que leva ao filosofar (isso já dizia Aristóteles). Lembro de Drummond em poemas como "A Luis Maurício, Infante" e "Especulações em torno da palavra homem" (eu poderia citar muitos outros). O poeta se pergunta pela generalidade de certas coisas que faz lembrar as generalíssimas questões da filosofia.
            Por isso que a poesia do poeta com quem conversei não é filosófica. Não me parece que ela dê importância explícita à inquietude provocada por questões gerais do ser humano. A propósito, ele mesmo me disse que sua poesia não é tão influenciada por Drummond. O geral tem algo que o descola da vida vivida. Esse poeta, felizmente, preocupa-se com a poesia das coisas circunstanciais, não com a poesia das grandes coisas. E, no entanto, ao dar um 'close' nas pequenas coisas, parece engrandecê-las: faz ver nelas algo de grande. Se Drummond se perguntasse pelo lugar no mundo, esse meu poeta se preocuparia com falar de seu lugar na Lapa:

"like a Lapa
no tapa
sabonata ao luar
[...]"

            Para Drummond, o mundo é vasto, e isso não tem solução. Para o meu poeta, não é difícil, daqui do Ocidente, fazer poesia com os de lá, do Extremo Oriente:

"Cerejeiras do anoitecer -
Hoje também
Já é outrora

Kobayashi Issa

Jaboticabas ao amanhecer
Aqui meia-noite
Aí meio-dia

Roberto Bicelli"

            Drummond, a cavaleiro entre filosofia e poesia, se pergunta por uma categoria aristotélica, o tempo: "o tempo, que fazer dele?" O meu poeta prefere o congelamento do instante, em lugar da condição de todos os instantes:

MEIA NOITE! > 0H!

A atenção pontiaguda ao particular (aquele lugar, aquele instante, o circunstancial) permite a ele, inclusive, congelar séculos:

SPLEEN
STRESS

            Drummond é filosófico, em alguma medida. O meu poeta, nem tanto. E ainda bem. Chega de poesia de universais. Que venha a poesia do particular.



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